"... faltam-me as vísceras de fora quando as palavras se deixam antever. " in Memórias Internadas

23.10.17

   Retomando:
   É pois o poeta, verdadeiramente, um ladrão de fogo.
   Ele tem a seu cargo a humanidade, os animais mesmo; deve fazer sentir, palpar, escutar as suas invenções; se aquilo que ele transmite de lá tem forma, ele dá a forma; se é informe, ele dá o informe. Achar uma língua;
   - De resto, sendo toda a palavra uma ideia, o tempo de uma linguagem universal virá! É preciso ser-se académico - mais morto que um fóssil - para compilar um dicionário, seja de que língua for. Um ser fraco que se meta a pensar sobre a primeira letra do alfabeto, e poderá rapidamente precipitar-se na loucura!-

ARTHUR RIMBAUD
Cartas do Visionário e Mais Nove Poemas
tradução e prefácio . Ângelo Novo
Fora do Texto 1995

8.10.17

PAÍS LONGÍNQUO

O meu sofrimento
É simples
   Tal como para cuidar de um animal de um país longínquo
   Não é necessário um tratador

A minha poesia
É simples
   Tal como para ler uma carta de um país longínquo
   Não são necessárias lágrimas

As minhas alegrias e penas
Ainda são mais simples
   Tal como para matar um homem de um país longíquo
   Não são necessárias palavras.

TAMURA RYUICHI

trad.: José Alberto Oliveira
ROSA DO MUNDO
2001 POEMAS PARA O FUTURO
ASSÍRIO&ALVIM

28.9.17


















sem prometimento acastelado,
em todo o tempo
é hoje
e a casa de pele
porosa às palavras
com língua
dentro

ra in " Memórias Internadas "

26.9.17



os deuses enlouqueceram por um deus
loucos perigosamente deuses

os loucos devem ser loucos

sem deuses nem deus

deus normalmente louco

enfartou-se  em nome dos deuses

ra in " Memórias Internadas

sem espetar

leves
[ desamarrados do cordame  etéreo ]
fluídos caindo na gravidade do ar

a varanda aberta

deixa espreitar o mar 

ra in " Memórias Internadas "

2.4.14

outra ilha



















habito esta pedra, outra ilha
preciso de a tocar 
pisar, tentando encontrar a sua natureza mineral

2.11.13

O SENHOR COGITO E O MOVIMENTO DAS IDEIAS - Zbigniew Herbert


As ideias passam pela cabeça
diz uma expressão corrente

a expressão corrente

sobrestima a circulação de ideias

a maior parte delas

permanece imóvel
no meio de uma paisagem pesada
de outeiros ermos
e árvores ressequidas

por vezes atingem

a corrente rápida de outro pensamento
acampam na margem
sobre um só pé
como as garças famintas

com tristeza

recordam-se das nascentes secas

e andam em círculo

à procura de um grão

não atravessam

porque não chegariam a nenhum lado

não mudam de lugar

porque não têm aonde ir

permanecem empoleiradas nas pedras

torcendo as mãos

debaixo do céu

pesado
e baixo
do crânio


Zbigniew Herbert

ESCOLHIDO PELAS ESTRELAS
antologia poética
apresentação e versões
Jorge Sousa Braga
ASSÍRIO&ALVIM  OUTUBRO 2009



14.4.13

QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão


O MUNDO QUANDO
NÃO ESTAMOS A OLHAR 
( g; - m;)


g;


A mão do poeta folheia a minha vida procurando

o sítio onde algo se passou, o sobressalto que ainda
hoje te mantém suspenso, indeciso sobre quem vive

na tua vida? Não eu esta mão guio; quem a guia então

se é ela quem me guia? Que podem os versos saber
desse sítio que o papel não chega para estancar.

O sítio retrai-se quando a mão se aproxima e contudo

é uma figura do medo que nele pulsa e se projecta
por cada vinco e dobra do teu corpo desconhecido.


O poeta troca de mão e insiste que o que procura

é o sítio onde por duas vezes olhaste a tua morte

e não era a mesma



MANUEL GUSMÃO

A Terceira Mão
CAMINHO  2007  .   poesia o campo da palavra

28.1.13

equívoco permanente



boca aberta
de boca a boca.
assombram-se as línguas
nas palavras gustativas.

ra in " Memórias Internadas "

27.1.13

REMORSO POR QUALQUER MORTE - JORGE LUIS BORGES


Já livre da memória e de qualquer esperança,
quase futuro, ilimitado, abstrato,
não é um morto, o morto: ele é a morte.
Como esse Deus dos místicos,
de Quem devem negar-se os predicados,
o morto ubiquamente alheio
é só a perdição e ausência do mundo.
Roubamos-lhe tudo,
não lhe deixamos uma cor nem uma sílaba:
é este o pátio que os seus olhos já não partilham
e aquele o passeio onde perscrutou a sua esperança.
Até o que pensamos
poderia ele pensar;
repartimos por nós como ladrões
todo o caudal das noites e dos dias.


Fervor de Buenos Aires  ( 1923 )


JORGE LUIS BORGES

Obra Poética Vol. 1
Trad.: Fernando Pinto do Amaral  .  Quetzal  setembro 2012

21.1.13

QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão


O FUTURO OUTRORA   ( a; - g; )



g;

Livre é o dom nas mãos do mundo: a alegria.

Nunca saberás dizer como se move sobre as águas
                                                              [a verdade
- a verdade que dança no teu corpo - e no seu teatro
sopra as almas como o vento as telas.

Mas para que uma última vez possas dançar
podemos, sim, pôr aqui o fogo
e a árvore da música: a vibração da sua haste

comunica-se; E o mundo estremece: a vibração
do mundo; quando não estamos a olhar.



MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão
CAMINHO  2007  .   poesia o campo da palavra

19.1.13

O Aprendiz Secreto - António Ramos Rosa



Ao fim de cada construção diária, ao crepúsculo, o construtor sobe a uma torre de pedra para meditar um pouco. A plenitude da tranquilidade é perfeita nos campos fulvos e ondulados em redor, coberto de ervas altas, de  flores e arbustos e marginados por um riacho sob a penumbra verde de um arqueado tecto de folhagem. Dir-se-ia que o olhar do construtor encontrou o ser em extensão, o ser que se oferece, no seu mutismo eloquente, e ao mesmo tempo se guarda no mesmo espaço do seu tranquilo esplendor. A meditação não é mais do que a contemplação de uma matéria que contem em si o excesso da sua energia calma e a densidade materna que envolve todas as interrogações e torna supérfluo e intruso o pensamento. Por isso o construtor se integra na paisagem  e, reflectindo-a, não a elabora nem a altera. Toda a sua vida está intacta e plenamente segura na indistinção entre o seu íntimo e a túmida e fresca serenidade da paisagem que o envolve. (...)


O APRENDIZ SECRETO
ANTÓNIO RAMOS ROSA

Quasi  .  1ª EDIÇÃO, JANEIRO 2001

1.1.13

GUARANIS ( Mito da criação ) ROSA DO MUNDO



Nhamandu, primeiro pai verdadeiro!
é sobre a terra que Nhamandu Grande Coração,
divino espelho do saber das coisas,
se anima.
Tu que fazes com que se animem
aqueles a quem deste o arco,
eis: de novo nós nos animamos.
As coisas são assim: quanto às Palavras indestrutíveis,
as quais nada, jamais, enfraquecerá,
nós,
os pouco numerosos órfãos das coisas divinas,
nós as repetiremos, animandos-as.
Que nos possamos então animar
e animar-nos uma vez mais,
Nhamandu, primeiro pai verdadeiro!

Nhamandu, primeiro pai verdadeiro,
a tua divindade que é uma,
do teu saber divino das coisas,
saber que desdobra as coisas,
faz com que a chama, faz com que a bruma
se engendrem.

Ele ergueu-se:
do seu saber divino das coisas,
saber que desdobra as coisas,
o fundamento da Palavra, ele sabe-o por si próprio.
Do seu saber divino das coisas,
saber que desdobra as coisas,
o fundamento da Palavra,
ele o desdobra, desdobrando-se,
ele faz disso a sua própria divindade, o nosso pai.
A terra ainda não existe, reina a noite originária,
não existe o saber das coisas:
o fundamento da Palavra futuro, ele a desdobra então,
disso faz a sua própria divindade,
Nhamandu, primeiro pai verdadeiro.

Conhecido o fundamento da Palavra futura,
No seu divino saber das coisas,
saber que desdobra as coisas,
ele sabe então por si próprio
a fonte do que está destinado a reunir.
A terra não existe ainda,
reina a noite originária,
não existe o saber das coisas:
ele sabe então por si próprio
a fonte do que está destinado a reunir.

                                    TRAD.: VASCO DAVID


R O S A   DO   M U N D O
2001 POEMAS PARA O FUTURO
ASSÍRIO&ALVIM  .   3ª ED. AGOSTO 2001


31.12.12

QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão

O FUTURO OUTRORA   ( a; - g; )



f;

Ouves o desconcerto: essas aves rasgam o sangue
que as inventa e cantam roucas, crocitam e grasnam
ásperas o amargo e doce crepúsculo da manhã

que outra vez no teu corpo nasceria.

Ouves também esse verão antigo. E depois
escutarás a estação que traduz as coisas
para mais perto do seu nome

e abre a árvore ao claro incêndio das suas aves.

                     Folheando-a, a mão do mundo

dobrava a noite que entrava
enquanto o mar descia o amor até aos corpos
e isso era durante séculos uma enseada clara.


MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão
CAMINHO  2007  .   poesia o campo da palavra


30.11.12

QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão


O FUTURO OUTRORA   ( a; - g; )



e;

Olhas a lenta e pastosa sintaxe do mundo de cá
que te cerca de uma a outra margem e assobia
íntima e falsa beijando na tua nuca o beijo próximo

e verdadeiro dessa asa que da loucura dizem

dulcíssima. É apenas o som mecânico e oxidado
do ferro velho, no lusco-fusco dos bastidores
um teatro esventrado pela flor negra da carne

azul, essa flor que cresce carnívora.
E vês então a boca do mar abocanhando o rio

e regurgitando os detritos dos humanos: aviões
elegantíssimos e por demais eficazes; bombas
giratórias e algálias do mais puro cristal.


MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão
CAMINHO  2007
poesia o campo da palavra

27.11.12

O QUE O DISCÍPULO ESCREVEU - Manuel António Pina



" Se tudo é ilusão,
se escrevo a ilusão de um poema ( o que quer que um poema seja ),
ou  a  ilusão  de  um  poema  se  escreve  a  si  mesma  ( o que quer
                                                                     que escrever seja ),
através de mim ( uma ausência ),
se a própria consciência disso é ilusão,
se a Palavra escreve através de palavras, de verbos e de
                        substantivos partilhando a mesma ilusão,
como um espelho reflectindo-se a si mesmo, uma sombra,
e se essa sombra é, por sua vez, a sombra de uma sombra de
                                                                       uma sombra
da Sombra,
se o Definido, no entanto, como um espesso coração, pulsa no
                                                        indefinido e no fugidio,
ou se paradamente olha
fitando o próprio olhar,
se Homero, e Shakespeare, e Santo Agostinho,
e Buda, e Bodhidarma,
são fugazes reflexos desse olhar,
se o discípulo pergunta e o mestre não responde, ou responde
            com alguma frase sem sentido ( pois não há sentido ),
ou se lhe bate, ou se o escorraça ( pois tudo é indiferente ),
se a Indiferença é, também ela, provavelmente, indiferente,
e é indiferente que, atrás de si, permaneça, ou não permaneça,
                                                                    rasto ou sombra,
se de outro modo ou do mesmo modo
algo, alguma coisa, nenhuma coisa..."


Isto foi o que o discípulo escreveu.
No entanto que mão ( que mão Real ) segurou a sua mão?


MANUEL ANTÓNIO PINA
NENHUMA PALAVRA
E NENHUMA LEMBRANÇA

ASSÍRIO&ALVIM   SETEMBRO 1999

21.11.12

ESCOLHIDO PELAS ESTRELAS - Zbigniew Herbert



O SENHOR COGITO E A IMAGINAÇÃO

1.

O Senhor Cogito sempre desconfiou
dos ardis da imaginação

do piano no cume dos Alpes
do qual saíam notas falsas

não apreciava os labirintos
as esfinges inspiravam-lhe desgosto

habitava uma casa sem cave
sem espelhos nem dialéctica

as selvas de quadros convulsivos
não eram a sua pátria

elevava-se raramente
nas asas da metáfora
para cair de seguida como Ícaro
nos braços da Grande Mãe

adorava tautologias
a explicação
idem per idem

que o pássaro é pássaro
a servidão servidão
o cutelo um cutelo
a morte morte

amava
o horizonte plano
a linha recta
a atracção exercida pela terra


ZBIGNIEW HERBERT
ESCOLHIDO PELAS ESTRELAS

antologia poética
apresentação e versões
JORGE SOUSA BRAGA
ASSÍRIO&ALVIM  -  OUTUBRO 2009

14.11.12

QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão


O FUTURO OUTRORA   ( a; - g; )

d;

e tu vês estas estranhas aves que são nomes velozes
e, desferidas, cicatrizam no corpo da terra o céu aberto
e a demais matéria do tempo que não cessa.
Outrora seriam rios e montanhas; florestas e deserto

foram depois estaleiros e refinarias desafectadas;
ou esse rebanho de gruas vermelhas que consigo
traziam a tempestade e deslocavam a cidade.

As paisagens mudavam de lugar e perdidos eram
os lugares e as gentes com quem nasceras.


MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão
CAMINHO  2007
poesia o campo da palavra

4.11.12

Maria Gabriela Lhansol - O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO

42

Meu menino passado,
De olheiras fundas e de olhos travessos,
Abertos e tapados de azul.
Eu contesto a cor, eu contesto
O que  for que seja imóvel. Se o azul
não for profundo, veloz e apurado,
Teu olhar verá apenas o que sabe.


MARIA GABRIELA LLHANSOL
O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO

desenhos de ILDA DAVID´
ASSÍRIO&ALVIM  -  2003

14.10.12

Midgarthormr - J.L.BORGES


Sem fim o mar. Sem fim o peixe, a verde
serpente cosmogónica que encerra,
verde serpente e verde mar, a terra,
como ela circular. A boca morde
a cauda que vem dos remotos nexos
do outro confim. Ao nosso redor
o forte anel é tempestade, fulgor,
sombra e rumor, reflexos de reflexos.
É também a anfisbena. Eternamente
olham-se sem horror os muitos olhos.
Cada cabeça fareja crassamente
os ferros da guerra e os despojos.
Sonhado foi na Islândia. Pelos abertos
mares foi dividido e receado;
voltará com o barco amaldiçoado
que se arma com as unhas dos mortos.
Alta será a sua inconcebível sombra
sobre a terra pálida no dia
de altos lobos e esplêndida agonia
do crepúsculco esse que não se nomeia.
A sua imaginária imagem nos macula.
Pela madrugada o vi no pesadelo.

JORGE LUIS BORGES
Os Conjurados

DIFEL   1985  2ª edição
tradução de Maria da Piedade M. Ferreira e Salvato Teles de Meneses

1.10.12

QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão

O FUTURO OUTRORA   ( a; - g; )


c;

O crepúsculo do entardecer
sobre o eixo do tempo e sobre si mesmo rodando
abria a venenosa vertigem, a sua grande flor azul

e negra, esta flor de luto fechando-se sobre a terra.

É então que tendo talvez mudado a mão das águas
ou interrompido o tempo a mão do mundo
se terá lançado contra a solidão a voz sem mais -

era a noite nascente : a noite que apenas nascia


MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão
CAMINHO  2007
poesia o campo da palavra

25.9.12

RILKE - AS ELEGIAS DE DUÍNO

A QUINTA ELEGIA
Dedicada à Sra. Hertha Koenig

...

   E agora tu, ó encantadora,
tu por cima de quem saltaram,
silenciosas, as mais atraentes alegrias. É possível
que as franjas do teu vestido sejam felizes em vez de ti -- ,
ou que a verde seda metálica
que te cobre os jovens seios rijos
se sinta infinitamente acarinhada e repleta.

Tu,
sempre diversa em todas as oscilantes balanças do equilíbrio
fruta de mercado da insensibilidade,
publicamente exposta dos ombros para baixo.

Onde, oh onde fica o lugar - trago-o no coração - ,
em que durante muito tempo eles ainda não podiam, nem um do outro
se soltavam, como animais que se cobrem, não
verdadeiramente acasalados ; --
em que os pesos continuam a pesar;
em que ainda no giro vão
das varas vacilam
os pratos...

E de súbito nesse penoso lugar nenhum, de súbito surge
o sítio invisível, onde a pura escassez
incompreensivelmente se transforma - , dá o salto
para esse excesso vazio.
Onde sem números
se abre a conta de muitas parcelas.

...

AS ELEGIAS DE DUÍNO
RAINER MARIA RILKE

ASSÍRIO&ALVIM
introdução e tradução  MARIA TERESA DIAS FURTADO
2ª EDIÇÃO . 2002

5.9.12

QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão


O FUTURO OUTRORA   ( a; - g; )


b;

Tu, de pé, recortado pelo ar e pelos pássaros, acesso
negro, procuravas o lugar incerto em que o rio e o mar
se encontram. E teria talvez mudado a mão

das árvores que em mudando o vento
soprariam para o largo a tua vida. - Contos largos
se mo permitem. E, contudo, estreita ficava
a vida ao fim de ser contada. Contos e recontos:

assim o rio se perdera noutro mar
como na voz de quem cantava sem manhã

MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão

CAMINHO  2007
poesia o campo da palavra

4.9.12

LUGAR | herberto helder



                                    II

Há sempre uma noite terrível para quem se despede
do esquecimento. Para quem sai,
ainda louco de sono, do meio
de silêncio. Uma noite
ingénua para quem canta.
Deslocada e abandonada noite onde o fogo se instalou
que varre as pedras da cabeça.
Que mexe na língua a cinza desprendida.

E alguém me pede: canta.
Alguém diz, tocando-me com seu livre delírio:
canta até te mudares em azul,
ou estrela electrocutada, ou em homem
nocturno. Eu penso
também que cantaria para além das portas até
raízes de chuva onde peixes
cor de vinho se alimentam
de raios, raios límpidos.
Até à manhã orçando
pendúnculos e gotas ou teias que balançam
contra o hálito.
Até à noite que retumba sobre as pedreiras.
Canta - dizem em mim - até ficares
como um dia órfão contornado
por todos os estremecimentos.
E eu cantarei transformando-me em campo
de cinzas transformada.
Em dedicatória sangrenta
...

herberto helder
POESIA TODA

ASSÍRIO&ALVIM    NOVEMBRO 1990


29.8.12

De Parts of a World - WALLACE STEVENS


DA POESIA MODERNA

O poema da mente no acto de encontrar
Quanto baste. Nem sempre teve
Que encontrar: a cena estava montada; repetia o que
Estava no guião.
                         Então o teatro foi mudando
Para outra coisa. Seu passado era uma lembrança.
Ele tem que estar vivo, que entender o discurso do sítio.
Tem que enfrentar os homens do tempo e encontrar-se com
As mulheres do tempo. Tem que pensar sobre a guerra
E tem que encontrar quanto baste. Tem
Que construir um novo palco. Tem que estar nesse palco
E, como um actor insaciável, vagarosamente e
Com meditação, dizer palavras que ao ouvido,
Ao mais delicado ouvido da mente, repitam,
Exactamente, o que ele quer ouvir, ao som
Das quais, uma audiência invisível escuta,
Não a peça, mas a si mesma, expressa
Numa emoção como duas pessoas, como de duas
Emoções a tornarem-se numa. O actor é
Um metafísico no escuro, tangendo
Um instrumento, tangendo uma corda de metal que dá
Sons a passarem por súbitas exactidões, na totalidade
A conter a mente, abaixo da qual não pode descer,
Além da qual não quer elevar-se.
                                                   Deve
Ser o encontro uma satisfação, e pode
Ser de um homem patinado, uma mulher dançando, uma mulher
Penteando-se. O poema do acto da mente.

FICÇÃO SUPREMA
poemas
WALLACE STEVENS

edição bilingue - tradução e prefácio
Luísa Maria Lucas Queiroz de Campos
ASSÍRIO&ALVIM  -  Junho 1991